segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Testamento e saldo de Sarney (1)

Wilson Figueiredo

    Sarney está de saída e se apresenta, nas reflexões finais relativas a 24 anos ininterruptos no Congresso, com números à mão (quando seu mandato de senador se esgotar em 2015, já à vista), não pretende ser candidato senão a suplente dele próprio, entre o que poderia ter sido e o que foi: nenhuma reparação a cobrar e, aos olhos da opinião pública, nada de ressentimentos para justificar o que tenha feito ou deixado de fazer. A recomendação final tem o sotaque da sabedoria que não se aprende nos livros: a seu ver, todos os presidentes da República deveriam, depois de exercer o mandato, ser proibidos legalmente de disputar qualquer cargo público eletivo. Medida altamente profilática.
    No último dia do ano, vive-se por tradição a ilusão de que, no primeiro do novo ano, tudo deixa de ser como era, e passa a ser como deveria ter sido e não foi. Desde 1955, quando obteve nas urnas o mandato de deputado federal pelo Maranhão, José Ribamar Sarney caiu nas malhas da política, já na terceira encarnação republicana, a Constituição de 1946, e deparou com a obrigação de fazer opções que, cada vez mais, dependiam das circunstâncias do seu tempo e menos da própria consciência.
    Esse Sarney, que começou cedo no mandato federal, nunca mais saiu da política, que tem a porta de entrada, mas não deixa saída senão pelas janelas que se abrem para o desconhecido: nunca mais saiu da política, que o levou, sem consultá-lo previamente, à Presidência da República, desorganizada e tensa, no retorno à democracia (sem passar pelas urnas, que falam pelo povo mas não filtram as impurezas e os interesses menores). Fez um governo com altos e baixos, mais altos e mais baixos do que se esperava. Foi a expressão política de uma situação incontrolável e contraditória, com raízes no que havia de bom mas também de menos bom, e de pior como matéria-prima para uma nova época.
    Depois da Presidência, Sarney retornou à planície representativa onde não mais se praticava a palavra oral, nem se proporcionavam aos cidadãos os maviosos cantos das sereias liberais que encantaram a opinião pública no passado. Recomeçava, aparentemente outro, o Brasil tolerante e generoso com erros, extravios, desvios e descaminhos históricos. Nem mais a exuberância verbal reprimida.
    Não sobreviveria a nova geração, que marcaria passo sem sair da expectativa retórica da Constituinte de 1946. Até que, depois de passar pelo rito da social-democracia, um operário foi alçado à Presidência da República no começo do novo século. Não era uma incógnita. Sem qualquer abalo, nem temor desmedido, o Brasil voltava ao natural e, o natural, ao que havia de menos bom, com o pior à disposição.
    Sarney tem razões que a própria reeleição desconhece. Presidentes deveriam ser encapsulados num compromisso legal como conselheiros da República, com recursos mínimos para o exercício de se reunirem com os presidentes, a convite deles, e, havendo necessidade, falarem com o desinteresse e o descompromisso de partidos e tendências políticas. As palavras do senador que, em mais dois anos, se aposentará com o mandato em curso — não pela oportunidade de baixa ressonância política — valem por um intervalo de sabedoria, de que nem tomam conhecimento os que chegam e despertam nostalgia nos que fazem a mala para o derradeiro mandato em esgotamento.

    A política, por sua natureza, só tem a porta de entrada na ressalva de Sarney, e deixa às janelas, que servem também para a defenestração literal, fazer despejos. Por lei mas, por fora da lei, pode-se também exercer serventia moral por vontade do eleitor.
    Em tom confidencial, com voz levemente velada e como quem confia, Sarney falou, certo de que, daqui para a frente, à medida que se afastar da ação política, seja como presidente de partido ou ex da República, poderá meditar objetivamente sobre o Brasil. Não lhe faltará tempo no tempo útil que lhe restar. Deixa aos interessados e desinteressados a maldição que faz falta: “As medidas provisórias destruíram o Congresso”. Mas não pediu: “Orai por nós”. Não mais se habilitará a cargos eletivos ao passar à etapa superior da vida, que não está em jogo. Basta-lhe saber que é o suplente de si mesmo. Aceita ser julgado pelas últimas palavras que tiver dito. E, como a política só tem a porta de entrada, vai zanzar por aí ou sucumbir, por temporadas, no Maranhão, que “é saudade que não passa”.
Do Jornal do Brasil