domingo, 20 de abril de 2014

Quando Macondo era aqui - CLÓVIS ROSSI

Nem García Márquez seria capaz de inventar história tão fantástica quanto a realidade da transição
    Enquanto corria alucinadamente atrás dos fatos, no imediato pós-redemocratização (1985), ficava sempre achando que o que acontecia naqueles momentos não era a realidade, mas um conto de Gabriel García Márquez.
    Começa pelo fato de que o primeiro presidente civil --e, ainda por cima, de oposição-- depois de 21 anos de ditadura militar, gabava-se de nunca ter tido nem sequer um mísero resfriado.
    No entanto, esse simpático senhor, Tancredo de Almeida Neves, teve que baixar ao hospital horas antes da posse que seria o marco da tão aguardada redemocratização. Se fosse dias antes, semanas antes, ainda vá lá. Mas horas antes, quando todo o mundo oficial já vestia os trajes de gala para a posse, só podia ser Macondo.
    Ainda mais que o Hospital de Base de Brasília, onde Tancredo sofreria a primeira de uma série de cirurgias, foi invadido por um sem-número de "sabe com quem está falando?", como qualquer hospital das cidades e personagens do realismo fantástico.
    Depois que o presidente eleito foi transferido para o Incor, em São Paulo, Macondo instalou-se à porta do hospital, um grande circo de jornalistas, curiosos e autoridades.
Todos os dias, entre tantos exotismos, aparecia lá um cidadão fantasiado de Santos Dumont. Nunca entendi a ligação que poderia haver entre Tancredo e Santos Dumont.
O presidente-que-virou-paciente escolheria para morrer um 21 de abril, o dia de Tiradentes, para acentuar o caráter de martirológio que cercou a sua agonia.
    Como se fosse pouco, o sucessor de Tancredo, José Sarney, não era um companheiro da oposição ao regime militar, mas fora presidente do partido de sustentação da ditadura até os seus estertores. Nem García Márquez, com todo o seu formidável talento, seria capaz de imaginar uma situação desse tipo.
    E ainda haveria mais: Sarney, cercado da desconfiança de todos ou quase todos os que fizeram oposição ao regime militar, àquela altura tremendamente desgastado, tornar-se-ia em breve o mais popular dos presidentes da República desde que existem pesquisas de opinião pública a esse respeito, ao adotar o Plano Cruzado.
    O partido do governo, o PMDB, elegeu, pela primeira vez na história da República, a maioria absoluta dos deputados federais e senadores, além de todos os governadores estaduais, com a única exceção de Sergipe.
    Mas, mal se abriram as urnas, o Cruzado naufragou, a inflação voltou e, com ela, caiu ao mais profundo dos abismos a popularidade do presidente. Caiu tanto que o presidente que batera recordes de popularidade em 1986 não teve, na eleição de 1989, um mísero candidato a defender o seu legado.
    E ganhou exatamente o que montara a campanha como o mais desbragado oposicionista. Era Fernando Collor de Mello. Nem em Macondo aconteceria de, na primeira eleição direta após a ditadura militar, o vencedor ser um "filhote da ditadura", como o chamava, com toda razão, Leonel Brizola.
    É ou não é realismo mágico?