quinta-feira, 9 de abril de 2015

"Alcântara na era espacial" recorta a escravidão negra no Brasil

   
Marcelo Tass em "Os netos do Amaral"
    As notícias sobre a suspensão da parceria entre Ucrânia e Brasil na efetivação da Centro de Lançamento de Alcântara nos remonta a uma obra capital para compreensão do processo de transformação da cidade na segunda metade do século XX. e o malogro anunciado. " Alcântara na era espacial", do jornalista Sérgio Meireles, é um trabalho de explanação simples, mas exata, sobre o que estava se passando ali, naquela cidade velha estacionada no tempo, envolta no manto futurista, quase repetindo a lenda histórica da espera de um rei que nunca nem chegou.
    
    Estive na década de 90 na cidade, acompanhando o repórter Marcelo Tass, antes da fase glamourosa do CQC, em um trabalho de reportagem para o programa "Os Netos do Amaral". Aquilo que seria mais um episódio de uma sátira ao cronista preferencial dos militares na rede Globo, Amaral Neto, se transformou em um drama social pungente. Encarando as relações entre quilombolas oprimidos e a prometida nova era espacial, Tass materializou o pensamento segundo o qual tudo que é sólido se desmancha no ar.
    
    Hibernado por falta de entusiasta que o resgate, o livro de Meireles com o passar dos tempos confirma sua densidade.
   
    Nos antecedentes históricos de "Alcântara na era espacial ",  Sérgio Meireles explica  como a cidade se transformou em um centro de escravidão negra no século 19, após a dizimação dos tapuias da grande aldeia tupinambá “Tatuitapera” (índios de cabelos compridos).  Cita, por exemplo, que o município foi criado em 1652 com 300 moradores  e que no final dos anos 1800 contava com 100 fazendas e 8 mil escravos nelas trabalhando.
    
    Entre os século 17 e 19, Alcântara recebeu mais de 25 mil negros de Bissau, Cacheu e Angola, afirma Meireles. A média era de dois mil africanos traficados por ano. No qüinqüênio de 1865 a 1870 se iniciou a decadência da cidade.  Meireles aponta ainda as causas da decadência da cidade: o incremento da indústria açucareira que soterrou o antigo celeiro do Maranhão, exportador de algodão, farinha, milho, tapioca, milho, carne, etc; e a navegação a vapor.
    
    Com a falência das fazendas, as terras foram vendidas ou passaram a ser desfrutadas pelos negros livres. Esta é a origem das comunidades negras alcantarenses. Levantamento do Centro de Cultura Negra realizado no início da década de 1980 identificou dez comunidades com origens semelhantes.
    
    O município de Alcântara possui uma área de 1.2301 quilômetros quadrados. Até a década de 80, período descrito pela obra de Sérgio Meireles, a população alcantarense era de pouco mais de 18  mil habitantes. Destes, cerca de 20 por cento habitava o centro urbano, a parte das construções coloniais que persistiu no tempo no mesmo espaço. O carvão passou a ser o principal produto de exportação, principalmente para a capital.
    
     Alcântara é tombada desde 1948 pelo Serviço do Patrimônio Histórico Nacional. O patrimônio é formado por 300 prédios, 10 ruas, três praças e oito travessas.  Ainda hoje o calçamento da ruas em pedras tipo cabeça de negro resiste.
    
    Em outubro de 1980, a cidade sediou o 5º Curso Interamericano Sobre Política e Administração Cultural, organizado pela OEA e SPHN (hoje IPhan).  Um documento com assinaturas de 20 técnicos renomados de vários países da América Latina solicitaram a OEA e Unesco o tombamento de Alcântara como “patrimônio histórico e artístico da  humanidade”.
    
    Coincidentemente nessa época Alcântara ingressou na era espacial.  No dia 27 de outubro de 1980, o Diário Oficial do Estado do Maranhão declarava de “utilidade pública” para fins de desapropriação uma área de 500 milhões de metros quadrados – 52 mil ha. Nesta área seria implantado o Centro Espacial de Alcântara (CEA, mais tarde modificada por decreto para Centro de Lançamento de Alcântara). Abrangia mais da metade do município.
    
    O decreto dividia a área em duas: um terço seria destinado à implantação do centro.  Como conseqüência, 538 famílias de lavradores ocuparam a mira do despejo.  Na denominada Área II, a Aeronáutica planejou a construção de uma cidade para 5 mil famílias. Nela haveria espaço para as famílias removidas da área I que se somariam a 1.500 famílias também ameaçadas de remoção. No total 2.038 famílias passaram a conviver com a instabilidade e insegurança sobre os antigos territórios.
    
    Foi o governador João Castelo Ribeiro Gonçalves quem autorizou a expropriação em caráter de urgência.  Na época os secretários também eram signatários do documento, entre eles o secretário da Indústria e Comércio, José Joaquim Guimarães Ramos, vereador de São Luís. A Aeronáutica adotou a estratégia do silêncio dos inocentes.
     
    Durante seis meses funcionou.  Foi então que o promotor público José Leitão, que mais tarde viria a ser prefeito do município, intermediou a venda de terras de Tiquara e Castelo. A denúncia foi feita pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara.
    
    No começo de julho de 1981, o comandante do Instituto Aeronáutico Espacial, Hugo de Oliveira Piva, confirmou a instalação da 2ª base de lançamento de foguetes brasileiros. As conseqüências socioculturais e políticas do projeto pautou a imprensa nacional.
    
    Foram as advertências do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade no Caderno B do Jornal do Brasil que disparou o debate público. Pipocaram repúdios e questionamentos sobre pontos obscuros.
   
    Foi a terra que acendeu a centelha dos protestos. Para onde vamos? Questionavam as mais de 2 mil famílias ameaçadas de desapropriação.  Igreja, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara e o recém-fundado Partido dos Trabalhadores canalizavam os protestos.
  
    Ligada à Prelazia de Pinheiro, a paróquia de Alcântara por meio do Reverendo Chambron recomendou que o chefe político de Alcântara, João Leitão, iniciasse conversações com a Aeronáutica.  Ao mesmo tempo, aos lavradores orientava para que exigissem seus direitos de permanência na área. A paróquia evitou medir forças com a Base.
    
    Aos removidos procurou esclarecê-los sobre exigências como terras férteis e condições semelhantes à anterior. Veio então o confronto com o poder executivo municipal.  E se indispôs com os tocadores do projeto da Base.
    
    Antes da instalação da Base, o município de Alcântara desconhecia os conflitos de terra comuns no território maranhense.  As terras ali eram comunais, aforadas ou aforamentos em poder de pequenos proprietários e um pequeno número de grandes proprietários. Não havia tensão. O prefeito na época Joaquim Fecure respondia com evasivas.  Meirelles denuncia o cinismo da prefeitura que tudo negava às pressões dos lavradores por informações sobre a Base. Sem saída, restou ao Brigadeiro Piva a explicação sobre o projeto.
   
    Os ânimos estavam exaltados à época. O presidente do Sindicato, Benedito Basson, acusou publicamente, durante a palestra  no Ginásio, a participação de João Leitão na negociata de terras.  Pelo verbo solto, respondeu a processo por injúria, calúnia e difamação em queixa-crime registrada por Leitão.
    
    O PT colaborou para que o assunto fosse interiorizado no município. Nos povoados atingidos, comissões foram formadas para estudar maneiras de reagir ao decreto. A desapropriação contribuiu para a coesão entre os lavradores. Por conta da Base Espacial de Alcântara, o Partido dos Trabalhadores pretendia eleger o Prefeito e mais três vereadores em Alcântara. Em 1981 o PT fez um vereador no município de Alcântara: Benedito Basson, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara.

Na Sede
    Com este título o autor inicia o capítulo sobre a Reação da Comunidade.  Não houve resistência na sede, afirma Meirelles. Apenas, vozes isoladas como o comerciante Vital, reclamaram da quebra da tranquilidade reinante até então, relata o jornalista.No interior o barulho foi crescente. Emanou principalmente nas comunidades. O tempo, mesmo com toda força das redes, colocou uma surdina em mais um grave problema em solo maranhense.


Lei crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre Alcântara

“Qualquer pessoa que tenha um mínimo de sensibilidade em face das coisas de arte e história (os “bens culturais” que o Governo procura não só defender como incitar a população a fazer o mesmo) arrepia-se ao ler que será instalada em Alcântara a segundo base de lançamento de mísseis brasileiros...”

    A área já começou a ser demarcada e um fato novo, surpreendente, bole com os nervos da pacata população da pacatíssima cidade inscrita no livro do Tombo do IPHAN como monumento nacional”

    Claro que os foguetes não serão lançados no espaço ocupado pelo acervo arquitetônico e paisagístico da cidade, mas a proximidade dessas assustadoras engenhoca vai trazer modificações profundas no viver de sua gente, e não é de crer que os benefícios de circulação do dinheiro compensem os incômodos da militarização de vasta área agrícola em torno do conjunto tombado. Não se poderia localizar a estação de mísseis em outro ponto, sem, afetar a grave e silenciosa beleza de Alcântara, com seus velghos sobrados convertidos em monumento nacional?”

Na coluna do Caderno B do Jornal do Brasil, edição de 21 de julho de 1981.