domingo, 4 de dezembro de 2016

Dentro da noite veluz com Ferreira Gullar

   
Soube da morte de Gullar em uma fila de supermercado. Não me assustei. Sei que a vida é breve,e, que o prazo de validade é uma incógnita que nos transporta por dias e noites nessa luta constante por decifrá-la. Na minha percepção diletante, há uma proximidade entre morte e poesia. Seja dos poetas byronianos que abdicavam cedo da vida em prol do sentimento extremo ou dos inebriados pela aventura. Aos vaidosos não, poesia é parente próxima da eternidade.
    Antes de sabê-lo morto, passei na rua Celso Magalhães, dos Viados, no centro. E, observando as casas à direita percebi uma de porta meio aberta. Duas senhoras de cabeças brancas e um senhor com anos à fio de história conversavam em tons não sustenidos. São coisas que o só o tempo é capaz de moldar n´alma do homem (de quaisquer gênero).
    Vi e ouvi Gullar pessoalmente três vezes em São Luís. Em  uma ocasião na Universidade Federal do Maranhão. Ele trajava uma camisa rosa que transmitiu a mim, como estagiário de jornalismo, intensa sensação de liberdade. Ali estava à minha frente um ídolo.
    Travara contato com Ferreira Gullar por meio do "Poema Sujo", antes mesmo de "A Luta Corporal" ou qualquer outro poema de sua autoria. Um pouco antes, passagem de sua biografia  me intrigou. Na revista Civilização Brasileira ele narrava uma passagem de sua biografia em que lembrava que em São Luís foi apresentado a um poeta vivo. Leitor voraz na Biblioteca Pública Benedito Leite, Gullar trazia consigo a compreensão de que todos os poetas estavam mortos. Então ter contato com um ,materialmente, lhe subtraiu um pouco a utopia que a somente a literatura é capaz de forjar.
    Em outra ocasião telefonei a ele. Queria saber sobre os poemas que estava publicado em novo livro após anos de silêncio. Era "Cidades inventadas". Perguntei se São Luís estava ente as cidades dessse oásis poético. Àspero, ele esclareceu sobre a obviedade inquirida.
    Na terceira vez, ele estava em meio a muitas pessoas que o laureavam à exaustão. Ria ele, constantemente, dos comentários ao pé de ouvido. Desconfiei que nada dali dito a ele  tinha importância para sua vida.
    Em São Luís, Gullar dá nome a uma avenida, permissão inconstitucional que nem aos poetas acho de direito. E, também, a uma biblioteca. Um pouco acima do chão, localizada no mezanino do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, na Praia Grande, de acervo minúsculo, meio ou quase invisível.
    Nos últimos anos passei a reproduzir seus artigos publicados no jornal Folha de S. Paulo. Eram provocativos, causavam revoltas nos admiradores do poeta. Sobretudo, nos mais antigos. A estes, talvez até a máxima; poeta bom é poeta morto, fosse justa.
    Gullar se foi em um domingo. Se distanciou ainda mais de São Luís.
Imediatamente à notícia de sua morte, emergiu na minha memória um poema seu...
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
de S. Francisco Xavier
e o clarão de teu olho soterrado
resistindo ainda
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento mostravam alegremente
que não dependem de nós.
(Morte de Clarice Lispector)

Adeus Gullar e Angela, que saudade de Antônio Carlos Alvim.
Segundo o sobrinho do poeta, Antônio Carlos Alvim, 
nesta casa viveu 
Gullar: a planta no telhado sinaliza