sábado, 4 de novembro de 2017

Maria Firmina é descoberto pelo país

    
Sérgio Maggio

Estudei em escola pública durante toda a minha formação e nunca nenhum professor ou professora assumiu o quadro-negro para falar de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira escritora brasileira a escrever um romance. Precisei viajar em itinerância teatral com o espetáculo “Eros Impuro” a São Luís para descobri-la, num museu dedicado a nomes que dignificam à cultura maranhense.

    Foi de assombro que li “Úrsula”, o romance poético e poderoso da prosadora, poeta, compositora e professora negra. O primeiro a ser publicado no Brasil (em 1889, pela Tipografia do Progresso), tendo uma mulher como escritora. Maria Firmina dos Reis era afrodescendente, bastarda e viveu, a maior parte do tempo, na cidade de Guimarães (MA). A obra é uma ficção abolicionista (também a primeira da literatura a tocar nesse tema).

    Diante desses valores de mérito, só nos resta acreditar que a literatura de Maria Firmina dos Reis foi silenciada por ela ser mulher, negra, nordestina e seu romance tocar num tema que até hoje é parcamente discutido nas escolas: a escravidão.
    O livro ficou no limbo até 1962 quando o escritor paraibano Horácio de Almeida (1896-1983),  adquiriu exemplares raros de brochura de uma biblioteca fluminense. Dentre eles, estava “Úrsula”. Ao abri-lo, compreendeu estar diante de um tesouro histórico.
Apesar de ter sua literatura registrada em jornais, Firmina dos Reis esteve pouco conhecida do público em sua condição de primeira romancista, certamente, por ser mulher, e em grande medida por não ter assinado o romance: pôs-lhe o pseudônimo Uma Maranhense”"
Horácio de Almeida
    Foi Horácio de Almeida quem descobriu a real identidade da autora, a partir de uma hercúlea pesquisa, com consulta a literatos e dicionaristas brasileiros. Só depois disso, “Úrsula” ganhou edição em larga escala. Em 1975, foi publicada a biografia “Maria Firmina, Fragmentos de uma Vida”, de autoria do escritor maranhense Nascimento Morais Filho (1922-2009). Essas ações salvaguardaram a memória de Firmina.
    Essas descobertas, no entanto, não ganharam as salas de aulas. “Úrsula” não se popularizou entre professores e nem sequer caía nos vestibulares. Neste ano de 2017, comemora-se o centenário de morte (em 11 de novembro) de Maria Firmina Reis, Mas pouco se fala dessa mulher extraordinária.
    Além do seu tempo, a professora de língua portuguesa Firmina ainda fundou, em 1881, a primeira escola gratuita e mista do Brasil, no povoado de Maçaricó, na cidade de Guimarães. Ali, meninas e meninos partilharam as mesmas salas de aula, numa mistura revolucionária entre filhos dos senhores de engenho e de lavradores. O escândalo foi imenso e projeto fechou as portas, com dois anos de funcionamento.
    Firmina começou a publicar poemas e contos em jornais a partir de 1860, assinando-os como M.F.R. O seu conto “A Escrava”, agitou a propaganda para as campanhas abolicionistas que se seguiram até 1888. Também compôs letras para diversas valsas, e para o “Hino da Libertação dos Escravos”, de que criou a melodia.
    Cristã, Firmina questionava as contradições entre uma sociedade que se considera seguidora do Cristo e permitia a escravidão.

TRECHOS/”Úrsula”
“Úrsula” revela a capacidade linguística e humanista de Firmina, dotada de formação clássica. Era prima do escritor e gramático Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), muito respeitado na cultura maranhense e um incentivador da escritora.

Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor aí impera; porque aí despe-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o apodrece, e livre dessa vergonhosa cadeia, volve a Deus e o busca — e o encontra, porque com o dom da ubiquidade Ele aí está".

Oh! o sol é como o homem maligno e perverso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! — e depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima! A donzela e a flor choram em silêncio, e o seu choro ninguém compreende…"

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que ria franca expressão de sua fisionomia: deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam resfriar, embalde— dissemos — se revoltava, porque se lhe erguia como barreira o poder do forte contra o fraco"

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima — ama a teu próximo como a ti mesmo —, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante. Àquele que é seu irmão! Os míseros escravos gemeram de ódio e de dor, mas nem a mais leve exprobração, nem um sinal de justa indignação se lhes pintou no rosto. Eram escravos, estavam sujeitos aos caprichos de seu bárbaro senhor"

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena que se lhe ofereceu à vista"

BAIXE GRATUITAMENTE O ROMANCE “ÚRSULA” (clique aqui)

OBRA DE MARIA FIRMINA DOS REIS

“Úrsula”. (Romance). San’Luis: Typographia do Progresso, 1859; 2ª ed., Impressão fac-similar. [prólogo de Horácio de Almeida]. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora LTDA, 1975, 198p.


“Gupeva” (Romance). 1861/1862.publicado em “O jardim dos maranhenses” e, em 1863, no jornal Porto Livre e no jornal Eco da Juventude, e transcrito em José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina – Fragmentos de uma vida, Imprensa do Governo do Maranhão, 1975.

“Poemas” em “Antologia Poética” Parnaso Maranhense, 1861.

“A Escrava” (conto): 1887: Revista Maranhense, nº 3. Republicada em José Nascimento Morais Filho

“Maria Firmina – Fragmentos de uma vida’. Imprensa do Governo do Maranhão, 1975.

“Cantos à beira-mar” (poesia).. San’Luis: Typografia do País, 1871; 2ª edição por José Nascimento Morais Filho, Rio de Janeiro, Granada, 1976.

“Hino da libertação dos escravos”, 1888.

Publicou poemas nos jornais literários:

I. A Imprensa; II. Publicador Maranhense; III. A Verdadeira Marmota; IV. Almanaque de Lembranças Brasileiras; V. Eco da Juventude; VI. Semanário Maranhense; VII. O Jardim dos Maranhenses; VIII. Porto Livre; IX. O Domingo; X. O País; XI. A Revista Maranhense; XII. Diário do Maranhão; XIII. Pacotilha; XIV. Federalista.


Composições musicais:

“Auto de bumba-meu-boi” (letra e música);

“Valsa” (letra de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis);

“Hino à mocidade” (letra e música);
“Hino à liberdade dos escravos” (letra e música);
“Rosinha”, valsa (letra e música);
“Pastor estrela do oriente” (letra e música);
“Canto de recordação” (“Á Praia de Cumã”; letra e música).